Saturday 22 August 2009

Interpretação e filologia aplicada

Na pagina 19 da tradução portuguesa de Presenças Reais, de George Steiner (Editorial Presença) somos confrontados com a seguinte ideia:

"(...) a interpretação é compreensão em acção; é uma tradução imediata."
Esta compreensão é simultaneamente analítica e crítica."

Umas linhas antes, o intérprete é definido como um "decifrador e comunicador de significações" e "um tradutor entre linguagens, entre culturas e entre convenções de representação". Creio que isso clarifica o entendimento de "tradutor" e, pelo menos para mim, parece-me uma definição aceitável e pacífica.
Deixemos de lado as questões levantadas pela "cadeia interpretação-entendimento", que são problemas de percepção e não de interpretação. O par interpretação-entendimento é uma cadeia de fluxo unidireccional; é irrelevante para a primeira o que acontece no segundo. Para dar um exemplo extremo, o facto de Yeats escrever em inglês pode ser um problema para os leitores que não dominam a língua, mas não é um problema do poeta nem da sua poesia. O auditório, o "implied reader", tem um papel meramente figurativo no processo interpretativo. Está lá para lembrar o intérprete dos problemas de linguagem, cultura e convenção. Vou dar outro exemplo extremo: um instrumentista de tecla pode sentir a necessidade de adaptar o tempo de uma fuga de Bach ao instrumento em que a toca (num cravo ou num órgão, por exemplo) ou ao espaço acústico, mas nunca o fará em função de ter um público mais ou menos informado.

Na ideia acima citada, encontro a ênfase nos três adjectivos associados à interpretação: imediata, analítica e crítica. Os fenómenos de interpretação (e de composição) implicam processos de reflexão inteligente que não apenas são não verbais como são também impossíveis de reproduzir verbalmente. Para Steiner, esses processos são mesmo "em supremo grau inteligência" (p.22). Reproduzo o seu exemplo: " tendo-lhe sido pedido que explicasse o seu estudo mais difícil, Schumann sentou-se e tocou-o pela segunda vez" (p.29).
O imediatismo da interpretação é talvez a sua característica mais evidentemente impossível de reproduzir verbalmente. O paradoxo de Steiner, "música é tempo liberto da temporalidade" (p. 35), nunca poderá ser explicado por palavras (pode apenas ser enunciado) mas é evidente em qualquer moteto de Josquin ou chanson de Du Fay.
Não estamos a afirmar que a interpretação dispensa explicação. Mais do que isso, afirmamos que a interpretação não pode ter explicação pois ela é a explicação.

O que pode então ser efectivamente verbalizado? O que nos resta quando aceitamos a impossibilidade de uma explicação verbal do acto de interpretar?
A filologia, simplesmente, quando entendida num sentido lato. Apenas o estudo que visa "situar e analisar a obra no seu contexto histórico" (p. 17) tem validade interpretativa porque apenas o texto primário nos pode aproximar do sentido primário. Mas se é verdade que a filologia pode ser exercida enquanto estudo autónomo e estanque, enquanto recurso interpretativo não pode perder de vista a sua aplicabilidade. Filólogo e intérprete podem ser pessoas distintas (embora o intérprete seja por definição um filólogo, mesmo que a um nível muito rudimentar) mas entre estas duas áreas há um fluxo bidireccional. A filologia aplicada é assim o único contributo verbal válido e sustentável no processo interpretativo.