Sunday 11 March 2007

O que significa ser músico.

Desde há algum tempo que penso na minha profissão, no que me levou a ser músico e naquilo que me move para querer continuar a sê-lo. Devo dizer que esta é talvez a única coisa em toda a minha vida sobre a qual nunca tive um segundo de hesitação. É um lugar comum mas sinto verdadeiramente que a profissão escolheu-me e não o contrário. Sei que poderia fazer muitas outras coisas para viver mas nada me faria ter o mesmo entusiasmo e empenho do que fazer o que faço. Creio que esta é uma profissão, talvez todas a sejam, que não pode ser exercida com qualquer dúvida. Quando jovens alunos me dizem não saber se hão-de prosseguir os estudos a nível superior, digo-lhes que se não sabem é porque não devem. Pode parecer um pouco cruel mas encontro muita gente a exercer a profissão de modo completamente resignado e automático. Encontro alunos que optaram pela área porque não sabiam bem o que queriam ou simplesmente não saberiam fazer outra coisa. E encontro finalmente pessoas que optaram por ser músicos porque é chique, sintomas dos tempos modernos. Sinceramente, acredito que essas pessoas possam viver da música mas não que possam vir a ser músicos. Mas isso é outra história...

O problema de se exercer uma profissão que nos escolhe é o de por vezes não termos opções. O não querermos fazer mais nada torna-se sinónimo de não podermos fazer mais nada. Tal deixa-nos reféns da arbitrariedade e precariedade a que a nossa profissão é frequentemente sujeita e dos escrúpulos, ou falta deles, daqueles que permitem que ela possa ser exercida.

Vem isto a propósito de uma reflexão que tenho vindo a fazer desde há alguns meses e de conversas que tenho tido com alguns amigos sobre a condição de músico em Portugal. É com alguma preocupação que vejo piorarem as condições em que somos forçados a exercer a profissão que escolhemos. É provavelmente com espanto que alguns lerão esta declaração. Apesar de tudo, a aparência é de uma melhoria: cada vez mais concertos, cada vez mais grupos, cada vez mais compositores portugueses são tocados nas salas de concerto. Tudo isso é verdade, mas o grande equívoco reside no fazer-se equivaler estes factos a uma melhoria das condições de trabalho.
É logo enquanto estudantes de música que crescemos com o estigma de vivermos num país pobre onde a cultura não é de facto uma prioridade. À custa desse estigma somos levados a crer que é necessário um especial sentido do dever e boa vontade para que tal mude e para que mais e melhor atenção seja dada aos agentes de cultura. Acontece que tal levou ao desenvolvimento de uma ética de trabalho que é tudo menos contribuinte para tal objectivo. Desenvolveu-se e instalou-se algo a que um amigo chama o "Nacional-Porreirismo" e que consiste no seguinte: porque o músico português (ou estrangeiro residente em Portugal, para o caso é o mesmo) compreende as dificuldades do meio, então é legítimo pedir-lhe que desempenhe o seu trabalho em condições praticamente aleatórias. Não respeita apenas ao valor da remuneração de um concerto, invariavelmente objecto de discussão parta-se de onde partir, mas também no conceito de acordo e na facilidade, ligeireza e impunidade com que estes são quebrados. Obter por parte da entidade que nos contrata uma simples carta ou fax com uma linhas onde se encontrem registados os detalhes do acordo pode ser uma verdadeira aventura com resultados quase sempre nulos. Ainda recentemente veio a público a situação em que foi colocado um colega por uma grande instituição pública que cancelou com apenas um mês de antecedência um evento que pela sua natureza já estava a ser preparado há um ano. Infelizmente tal situação não é um caso isolado nem excepcional, a novidade aqui foi a coragem do visado em reagir e tornar pública uma situação vergonhosa, mesmo com a consciência que tal acto lhe iria fechar algumas portas e criar inimigos.

Neste momento, por ingenuidade ou oportunismo, é procedimento generalizado e banalizado de um organizador actividades artísticas calcular o número e tipo de projectos que pode fazer com determinado orçamento contando com o nacional-porreirismo dos músicos portugueses (ou estrangeiros residentes em Portugal, repito). Assim, em vez de fazer 5 concertos pagos justamente, consegue fazer 8 e dar a impressão de um bom gestor e fomentador de actividade cultural. A verdade é que ao ter tal comportamento, essa pessoa não está a contribuir para o desenvolvimento da cultura, muito pelo contrário, está a sufocá-la. Não é possível, e tal é demasiado evidente e facilmente demonstrável, ter projectos de qualidade se não houver profissionalismo em todas as partes. E profissionalismo significa a contratação de profissionais oferecendo-lhes condições profissionais e exigindo que se comportem como profissionais. Diga-se em abono da verdade que há, felizmente, excepções. Há ainda alguns responsáveis que tem um grande sentido de justiça e que conseguem promover iniciativas que se destacam pela sua qualidade precisamente porque compreendem a importância de ser-se profissional.

Os músicos também têm a sua parte de responsabilidade neste fenómeno. Há sempre alguém disposto a aceitar condições indignas por boa vontade ou contra o argumento de que a realização de tal espectáculo pode beneficiar a carreira de um indivíduo ou grupo. A única coisa que conseguem efectivamente é que se lhes cole uma etiqueta de "músico explorável" e que se perpetue todo este jogo. Não faço juízos de moral sobre o que os meus colegas aceitam ou não em termos de condições de trabalho. Cada um sabe aquilo que efectivamente pode ou não pode aceitar e recusar. Mas gostava que um dia fizessem o seguinte exercício: que calculassem o seu rendimento como músicos, que subtraíssem o investimento que necessariamente fazem em instrumentos, partituras, cds (sim, quando um músico compra um disco é um investimento), livros, cursos de aperfeiçoamento, e todas as outras despesas relacionadas com a profissão e que dividissem o restante pelo nº de horas que dedicam a preparar concertos (estudar, ensaiar, desenhar programas, escrever notas, gerir detalhes logísticos, etc.). Se qualquer empresa fosse gerida do mesmo modo que um músico gere a sua carreira não haveria contabilidade que resistisse. Um exemplo: Recentemente adquiri um conjunto de instrumentos que serão usados num dos meus projectos. Só para recuperar aquilo que gastei com eles precisarei de realizar 40 concertos desse projecto. A pergunta é óbvia: porque o faço? A resposta é igualmente óbvia para um músico: porque não posso deixar de o fazer.

Por tudo isto tomei uma decisão: Recusarei trabalho pago injustamente, protestarei quando me sentir explorado. É uma decisão que não terá quaisquer consequências práticas ou reflexos positivos na minha carreira de instrumentista mas que pelo menos faz-me não perder alguma coerência comigo mesmo para aquilo que é a minha noção de ser-se músico.

Decidi que queria ser músico porque gosto de fazer música. Quando fazer concertos torna-se algo ligeiramente de fazer música, então prefiro não fazê-los.

2 Comments:

Anonymous Brruno said...

Grande texto, com qual concordo a 100%. Não digo grande no aspecto de tamanho mas sim grande em termos da realidade e vericidade do mesmo.
É verdade que em Portugal está-se cada vez pior, em termos de profissões e algo mais, mas sem dúvida alguma que em relação aos artistas, seja músicos, pintores, entre outros todos sentem esta realidade. Realidade injusta e que por vezes nos manda abaixo, mas há que levantar a cabeça e seguir em frente. Não faço juizos de valor, mas quando dizes que rejeitas todas as propostas que te levam a ser "explorado" e a qual não te sentes valorizado é uma coisa que acho que realmente tens coragem e deves continuar a fazer! Pelo menos és sincero contigo mesmo! Cumprimentos

2 July 2010 at 23:30  
Anonymous Anonymous said...

Triste saber da situação da música aí em Portugal. Sou brasileiro e aqui no Rio de Janeiro não é muito diferente. Músicos sofrem também para conseguir algum lugar interessante e que os pague dignamente. Mas seguimos adiante. Nossa profissão/sina/sonho é assim mesmo, árdua, mas não consigo imaginar-me fazendo outra coisa.

7 July 2010 at 12:54  

Post a Comment

Subscribe to Post Comments [Atom]

<< Home